Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

ANTÓNIO GUERRA - INFÂNCIA NO QUITEXE

Tive o previlégio de nascer em Angola e crescer livre pelas terras do Quitexe e viver a odisseia da época das chuvas e das viagens em estradas de terra batida. Aqui deixo as histórias dessa infância vivida de modo intenso e feliz

ANTÓNIO GUERRA - INFÂNCIA NO QUITEXE

Tive o previlégio de nascer em Angola e crescer livre pelas terras do Quitexe e viver a odisseia da época das chuvas e das viagens em estradas de terra batida. Aqui deixo as histórias dessa infância vivida de modo intenso e feliz

António Manuel Guerra 20/06/1950 - 22/10/2010

Quimbanze, 30.10.10

O Tó Guerra deixou-nos. Aos 60 anos não resistiu à terrível doença que se manifestou há menos de um ano. Com uma vontade enorme de viver, nunca se deixou abater e acreditou, sempre, que iria superar a enfermidade. Não o conseguiu, mas fica connosco a memória de um homem excepcionalmente bom, querido e estimado, por todos.

 

Tive o prazer de o (re)encontrar há alguns anos e fiquei encantado com a sua afabilidade e simplicidade, o seu enorme coração, sem tempo para a mesquinhez ou a maledicência.

  

Foi o primeiro filho de europeus ou, sem eufemismos, o primeiro branco a nascer no Quitexe, filho de Abílio e Helena Guerra. Aí cresceu, numa infância feliz, até aos 10 anos, tendo deixado o Quitexe depois dos trágicos acontecimentos de 61.

 

 

“Eu tive o privilégio de nascer em Angola e crescer livre (qual bicho do mato) pelas terras do Quitexe e viver a odisseia da época das chuvas e das viagens a Luanda sem estradas asfaltadas. Aprendi a comer o funge com as mãos, com quem mais entendia do assunto e, acreditem, tem outro paladar.”

 

O seu amor pelos amplos espaços ainda se mantinha e concretizava-o com a sua auto-caravana que lhe permitia calcorrear as distâncias em liberdade.

 

Em boa hora o desafiei a escrever as suas memórias de infância, no Quitexe, e ele partilhou connosco uma série de histórias magníficas, desde o fatídico 15 de Março, até às hilariantes descrições das suas aventuras de criança rebelde.  

 

       

 

Sei que lhe foi difícil reviver o 15 de Março e ter verificado que o trauma que julgava já arrumado numa gaveta da memória, afinal estivera sempre presente na sua vida, manifestando-se inconscientemente em momentos delicados. Assumiu a descrição da tragédia com o distanciamento que só um espírito livre consegue, sem ódios, sem rancores ou ideias de vingança recalcada. O horror visto pela criança de 10 anos, com os mesmos olhos, com a mesma simplicidade e incredulidade.

  

 

  

Não fosse a guerra civil, iniciada em 1975 e o Tó teria sido, sem dúvida, um cidadão angolano com as raízes bem fundas nessa terra que amava e a que pertencia de alma e coração – o Quitexe.

 

 

 

 

A toda a família, em especial à Nanda, ao Pedro e à Odete as mais sentidas condolências deste blogue.

 

João Garcia

António Guerra - 15 de Março de 1961

Quimbanze, 10.04.10

Chamo-me António Manuel Pereira Guerra, filho de Abílio Augusto Guerra e de Maria Helena Borges Pereira Guerra, nasci no Quitexe a 20 de Junho de 1950, em casa de Celestino Guerra, e estas são algumas das minhas memórias, na altura do ataque com 10 anos.

 

Neste pequeno relato, irei contar a minha vivência sobre o 15 de Março de 1961, sem juízo de valores ou ideologias políticas. Sobre isso já se escreveu demais e, com o passar do tempo, infelizmente foram-se perdendo muitas das pessoas que viveram na pele essa data, e poderiam testemunhar a sua vivência trágica.

 

 

Este pequeno contributo, não tem de forma nenhuma a pretensão de ser mais um relato dos acontecimentos de 15 de Março de 1961, mas deverá apenas ser entendido como uma pequena participação, para que este blog sobre a nossa terra não caia no esquecimento e possa assim crescer com o contributo de todos os que um dia passaram pelo Quitexe.

 

 

No final de 1960, tinha eu 10 anos, já qualquer coisa de anormal se fazia sentir, pois as festas familiares (Natal e passagem de ano) não foram como nos anos anteriores. As reuniões de família decorriam sempre com as armas em presença.

 

  Por relato dos meus pais, o chefe de posto do Quitexe, na altura (Nascimento Rodrigues), procurou no dia 14 de Março de 1961 o meu pai e o sr. Jaime Rei, pedindo-lhes que o acompanhassem no dia seguinte para os lados do Zalala, pois tinham fazenda para aqueles lados e iriam efectuar contactos com os trabalhadores das diversas fazendas dessa região pedindo-lhes que, caso aparecessem elementos estranhos ou suspeitos, os prendessem e mandassem recado ao posto do Quitexe. A minha mãe bem pediu ao meu pai que não fosse, mas de nada lhe valeu (pressentimentos de mulheres).

 

No dia 15 de Março, o meu pai tinha saído cedo com o administrador, o Sr. Jaime Rei e dois cipaios do posto. No Quitexe estavam a passar férias a minha irmã (que estudava em Luanda no Colégio das Freiras), e em casa do meu tio Augusto, onde também viviam os meus avós (António Inocêncio Pereira e Joaquina Pereira), estavam as minhas primas Milu e Juju, filhas do meu tio Celestino e tia Maria (que na altura estavam em Luanda).

Eu levantei-me cedo, como era hábito, e fui a casa do tio Augusto encontrar-me com a Milu e Juju, para as desafiar para irmos brincar. Como elas ainda estavam a matabichar, esperei por lá um pouco.

A minha mãe encontrava-se em frente da nossa casa, a curta distância da casa do tio Augusto, a podar umas roseiras de um canteiro de flores. A minha irmã ainda dormia.

 

Contou depois a minha mãe, que quando soaram as badaladas das oito horas, no sino da administração, que era o sinal para os comerciantes abrirem as portas das lojas, se gerou um certo burburinho na rua de cima. Era, afinal, também o sinal para começar o ataque ao Quitexe. Uns dias antes tinham fugido uns presos da prisão do posto e na perseguição que se seguiu, houve bastante algazarra, pelo que a minha mãe não deu importância ao barulho que ouviu, pensando tratar-se outra vez de uma fuga da prisão. Foi nesse instante que um elemento que estava na esquina da nossa casa, empunhou uma catana dirigindo-se a ela de arma no ar com a intenção de a matar. Ela começou a fugir em direcção a casa do seu irmão Augusto, aos gritos de socorro.

 

Foi nesse instante que nós ouvimos os gritos da minha mãe e nos apercebemos da gravidade da situação. De imediato o tio Augusto agarrou a espingarda .22 long, ordenou-nos que nos escondêssemos e que só poderíamos sair quando ele nos fosse buscar. Desatou a correr em direcção à irmã que, entretanto, já tinha tombado junto ao cruzamento para a rua da Igreja (esta cena marcante, foi vista por nós, da porta de casa do tio Augusto). Os meus avós que também tinham saído em socorro da minha mãe, tombaram também. A minha avó tombou na varanda da casa dos meus pais e já a vi morta quando acabou o ataque. O meu avô foi ferido com uma catanada na nuca, foi connosco para o Uíge, e veio a falecer 5 dias depois no hospital de Luanda.

 

Algum tempo depois chegou o tio Augusto que nos veio buscar, já com outra arma uma caçadeira, que ele tinha ido buscar à arrecadação do posto, onde estavam algumas armas apreendidas, pois a .22 long tinha encravado ao primeiro disparo (salvou-se graças a uma pequena pistola 6,35 que andava sempre com ele no bolso das calças).

Em frente da minha casa, estavam o Sr. José Coelho Guerreiro e a esposa (D. Felismina), com a filha bebé a Maria Helena, a minha mãe com 11 catanadas (8 nas costas, 2 nos braços e uma no rosto, tendo o nariz ficado preso pelo lábio superior), a minha irmã e o meu avô que foi colocado num colchão na carroçaria da carrinha do Sr. José Guerreiro, e com o tio Augusto de pé na carroçaria a fazer protecção, seguimos para o Uíge. O filho mais velho do sr. José Guerreiro (José Cebola Guerreiro de sete anos), tinha ficado degolado à entrada da loja dos pais na rua de cima. Na cabine da carrinha de apenas 3 lugares, seguia o Sr. José a conduzir (ferido), a esposa (ferida) e filha, a minha mãe, a minha irmã, as minhas duas primas e eu.

Fotografia da minha Mãe Helena Guerra, sendo visível a cicratiz que lhe atravessava o rosto. A catanada fragilizou-lhe, também o osso do maxilar

 

A minha mãe segurava o nariz, que apenas estava preso pelo lábio superior, com um roupão turco que ficou ensopado em sangue, bem assim como todos nós, pois iam na cabine três pessoas feridas.

A viagem até ao Uíge decorreu sem incidentes e ao chegarmos ao Hospital, já lá estava o Dr. Almeida Santos (Dr. Talambanza como era conhecido) à espera, tendo sido a primeira pessoa a socorrer a minha mãe, aplicando-lhe logo uma injecção à entrada do Hospital.

 

Quando o meu pai chegou ao Quitexe, já se tinha dado o ataque e já nós tínhamos seguido para o Uíge. Como houve mobilização geral, nenhum homem mais foi autorizado a abandonar o Quitexe. Ficou 15 dias sem saber de nós, e nós sem sabermos dele.

 

Entretanto, no Uíge, o tio Augusto levou-nos para uma sala no hospital e deixou-me de guarda às espingardas encostadas a um canto da sala, enquanto ele procurava saber dos feridos. Ao hospital chegavam cada vez mais pessoas, quer feridos, quer pessoas que iam saber de amigos e de notícias.

Uma senhora que morava próximo do hospital, levou a minha irmã e as minhas primas para casa dela, onde puderam trocar de roupa que entretanto lhes arranjaram, pois nós saímos do Quitexe só com a roupa que trazíamos vestida. Próximo do meio dia, o tio Augusto levou-me a casa dessa senhora, onde troquei de roupa (as nossas estavam todas cheias de sangue) e almoçámos.

 

Logo a seguir ao almoço, o tio Augusto foi-nos buscar e levou-nos para o aeroporto do Uíge, onde aguardámos a chegada de um avião (Dakota) da DTA, vindo de Luanda para levar os feridos e ao qual foram retirados alguns bancos para receber as macas. Aguardámos a chegada do avião, sózinhos e sem qualquer protecção militar. Quando o avião aterrou, foram embarcados os feridos do Quitexe e lembro-me de ter visto a D. Felismina, Sr. José Guerreiro e filha, a minha mãe, o meu avô, a Geninha e a prima Beatriz, o Tio Augusto, a minha irmã, e as minhas primas. Mais pessoas embarcaram, pois o avião ia cheio, mas não me recordo de quem eram.

 

Ao chegarmos a Luanda, não fomos desembarcados para o terminal do aeroporto como seria normal, mas fomos metidos todos em ambulâncias que nos levaram para o hospital Maria Pia, onde ficaram internados os feridos. O tio Augusto, as minhas primas, a minha irmã e eu, podemos juntar-nos ao tio Celestino, que estava em Luanda e tinha seguido as ambulâncias desde o aeroporto e aguardava por nós.

O tio Celestino levou-nos para o hotel Europa, onde ele se encontrava hospedado e fomos mandados subir imediatamente para os quartos, não tendo sido permitido a ninguém falar fosse com quem fosse.

À porta do hotel encontravam-se bastantes pessoas, mas só o meu tio Celestino ficou para trás, e creio ter sido nessa altura que ele falou com o autor do livro Sangue no Capim (Horácio Caio), que faz uma alusão muito rápida sobre as pessoas com que o meu tio estaria preocupado (Tio Jaime e família, família Rocha, etc.). Ao tio Augusto que infelizmente viveu na primeira pessoa o ataque ao Quitexe e que para mim foi o nosso salvador, não foi permitido que falasse com ninguém (não entendemos porquê). Mais tarde, e à medida que se ia falando mais sobre estes acontecimentos, começámos a perceber uma certa manipulação por parte do poder que tentara encobrir os ataques.

 

Entretanto, uma senhora amiga, esposa de um caixeiro viajante, que aparecia pelo Quitexe e por vezes ficava em nossa casa, viu o nome da minha mãe, num jornal diário na lista dos feridos, foi visitá-la ao hospital e mandou um telegrama para o meu pai, dando-lhe conta que a família se encontrava viva em Luanda.

Na primeira oportunidade que o meu pai teve de pedir uma licença ao exército para ir a Luanda ver a família, fê-lo e nunca mais regressou ao Quitexe.

 

As nossas casas foram entretanto alugadas ao exército, tendo permanecido assim até ao 25 de Abril.

 

António Manuel Guerra

 

 

 
comentário:
 
De A. Jorge Santos a 26 de Março de 2009 às 20:10
 
Gostaria aqui de cumprimentar o amigo António Guerra, por nos trazer este testemunho por ele vivido, na 1ª pessoa, e que a mim particularmente, me emocionou. É-me dificil imaginar, o que se passará na cabeça de uma criança de 10 anos, perante os acontecimentos que aqui nos relata.
Um abraço tambem ao amigo João Garcia, por juntar neste blogue, todos estes valiosos testemunhos, de conterrâneos nossos.
A. Jorge Santos
 
 
De André Avelino dos Santos a 12 de Abril de 2012 às 18:07
 
Em 1957/58 vivi no Quitexe. Meu pai era empregado na loja que pertencia à madame Van der Schaf, mesmo em frente à casa dos Guerras, ali no cruzamento da rua que ia dar à igreja e saída para Camabatela.. Madame van der schaf era tb dona tb da Fazenda S. Pedro onde era encarregado um tal Sr. Ramalho, se não me falha a memória. Era chefe do Posto o Sr. Barreiros e a esposa dele foi minha professora. Lembro-me muito bem do "Tonito" e da Odete cuja casa ficava um pouco mais além, logo a seguir ao talho do Sr ??????. É emocionante, depois de tantos anos, ler esta narrativa feita por uma pessoa que viveu aqueles momentos terriveis, para mais sendo conhecida dos tempos de menino. Tonito era mais novo que eu (sou de 1945) mas o Odete devia ser da minha idade ou pouco menos.
  
 
 
De Silva Virgílio a 8 de Maio de 2014 às 12:46
 
António Guerra,
Tem com certeza traumas pelo que viveu em Quitexe, votos de muita coragem para suportar a situação marcante que viveu. Na minha opinião foi uma vítima dupla do regime fascista de Portugal e dos protagonistas dos ataques de 15 de Março de 1961. Depois da segunda guerra mundial, já não se deveria opor a necessidade da autodeterminação dos africanos, não me refiro só aos negros, também aos mestiços e brancos. Tive a oportunidade de ler o Manisfesto da UPA,/FNLA, MPLA e UNITA, nenhum deles perspectivou uma independência só para negros. De resto partilho consigo um texto de um autor identificado abaixo e o meu comentários sobre os acontecimentos no geral:

Para sua informação os acontecimentos do 15 de Março foram muito mais abrangentes do que imagina: províncias do Zaire, Uíge, Malanje, Kuanza Norte, Luanda nas regiões da Província do Bengo actualmente, até mesmo na Província do Kwanza Sul. A sabedoria popular da minha região através de familiares e vizinhos deu-me a conhecer muita coisa sobre as atrocidades do colonialismo em Angola e que foram confirmadas com muita literatura portuguesa, agora que as fontes são mais diversificadas e que podem moderar a sua leitura sobre os acontecimentos da reação dos nativos às atrocidades coloniais ao longo de séculos.

Abaixo faço o meu comentário e insiro extratos de algumas fontes portuguesas
Relatório militar revela que tropas portuguesas participaram em decapitações
LUCINDA CANELAS e ISABEL SALEMA
16/12/2012 - 09:48
O relatório de um capitão prova que o Exército português participou em Angola numa "acção punitiva" em que "terroristas" foram decapitados. Havia testemunhos pessoais destas práticas, mas este é o primeiro documento escrito.


A violência do documento é óbvia e incómoda, por vezes desconcertante. Tão desconcertante na sua brutalidade, que, se tivesse sido produzido pelos inimigos dos militares portugueses que participaram na guerra colonial em Angola, dificilmente seria mais verosímil.
A "cerimónia" de fuzilamento com mutilação de cadáveres começou às 10h30 de 27 de Abril de 1961, poucas semanas após o início da guerra em Angola, na sanzala Mihinjo, a cerca de 20 quilómetros de Luanda. É descrita por 11 pontos, sendo o primeiro uma explicação muito incompleta dada ao povo pelo soba, o chefe tribal, para a presença de um pelotão de execução português.
Segue-se o disparo do que devem ser seis pistolas-metralhadoras. E os suspeitos de terrorismo caíram. Depois, vem a violência extrema.
"5 - Avançaram os cortadores de cabeças. Cumpriram a sua missão.
6 - Avançou o soba. Colocou as cabeças nos paus. Ficaram dois sem cabeça. As cabeças ficaram espetadas pela boca, submissamente viradas para o chão.
7 - Clarim tocou ombro arma, apresentar arma. Depois: Marcha de continência, e terminou a cerimónia.
8 - Soba falou ao povo, explicando a razão por que tinham ficado dois paus sem cabeça, à espera dos futuros não respeitadores da lei.
9 - Ao soba eu disse: Os corpos podem ser enterrados as cabeças ficam sete dias, os paus ficam para sempre."
Seria extremamente abusivo com base num único documento, por mais forte que seja, fazer um juízo global sobre a presença militar portuguesa em África e sobre o comportamento das tropas.
"Meu comentário sobre os excessos na guerra colonial pela independência:
Quanto aos excessos da população em cólera sobre o 15 de Março, acho que todo um sistema de escravatura e humiliação dos nativos praticado pelos colonialistas, em pleno Séc XX esteve na base de tudo, sem querer desculpabilizar os excessos. Que revolução não teve excessos neste mundo? Qual foi a resposta dos colonialistas sobre os camponeses da Baixa de Cassange em 4 de Janeiro de 1961 que se manifestaram de forma pacífica?
Massacres aos milhares, política de terra queimada, aviação com bombas de Napalma.
Depois dos acontecimentos do 15 de Março, um cidadão português ligado ao poder colonial vendo os excessos escreveu textualmente:"Estamos a correr o risco de ver em cada nativo um terrorista"...

Histórias e recordações do Quitexe

Quimbanze, 10.04.10

Diz-se que “quem bebeu a água do Bengo, nunca mais esquece”. É bem verdade, pois ainda não encontrei ninguém que passasse por Angola e não recorde aquela terra com saudade. Eu tive o privilégio de nascer em Angola e crescer livre (qual bicho do mato) pelas terras do Quitexe e viver a odisseia da época das chuvas e das viagens a Luanda sem estradas asfaltadas.

 
Do Quitexe, lembro-me com saudade dos tempos de menino, em que ia de madrugada para a fazenda do meu pai, na estrada do Zalala, com o meu tio Henrique que andava a abrir a estrada no interior da fazenda com um tractor de lagartas da fazenda Guerra & Companhia. Ainda tenho vagas recordações da casa do tio Celestino onde eu nasci e do Quitexe com uma dezena de casas e ruas de terra.
 
Lembro-me da construção da igreja e da tarde em que o padre capuchinho (Genipero) ficou soterrado no areal de onde extraíam a areia para a construção. Os trabalhadores, na aflição de o socorrerem rasgaram-lhe a batina toda, que a minha mãe depois cozeu. Enquanto isso, a minha mãe emprestou umas roupas do meu pai ao padre Genipero. Recordo ainda a aflição do padre, com receio que o chefe de posto (António da Silva Barreiros, meu padrinho de crisma) o visse naquele estado. O chefe Barreiros era uma pessoa muito bem disposta e sempre na brincadeira com o padre. Imagine-se vê-lo naquela figura. De calças e camisa, segurando as calças com as mãos, pois não quis colocar o cinto (quem habitualmente só usava aquela batina até aos pés de um tecido castanho muito grosso e de capuz). Era mesmo hilariante. Sorte do padre que o chefe Barreiros não apareceu nesse dia pela casa dos meus pais

Histórias e recordações do Quitexe - II

Quimbanze, 10.04.10
Carrego ainda hoje na perna direita as marcas de uma aventura de criança com o António Figueiredo Antunes, filho do sr. Antunes do talho e da D. Alice.
 
Estava um tractorista da fazenda Pumbaloge com um tractor da fazenda (de rodas e com uma lâmina de nivelar na traseira) a fazer a avenida que ia para a igreja. Eu e o Antunes, sempre que o tractor baixava a lâmina, sem que o condutor nos visse, subíamos para a lâmina e descíamos toda a avenida empoleirados. Ao fundo da avenida, andava o meu pai junto da casa que andava a fazer. Numa das vezes que o tractorista se preparava para descer a avenida, o meu pai viu o Antunes subir para a lâmina e deu-lhe um grito para sair dali. A mim não me via porque eu estava do lado direito do tractor, já empoleirado na lâmina. O Antunes aborrecido por não poder fazer mais aquela descida, chegou-se ao pé de mim e deu-me um empurrão que me atirou da lâmina abaixo, no preciso momento em que o tractorista baixava a dita lâmina, que descarregou todo o seu peso sobre a minha perna direita, quase junto ao tornozelo. Como eu gritei, o homem levantou a lâmina e veio-me socorrer. Eu só lhe disse: “não digas nada ao meu pai” e desatei a correr por uma vereda lateral que ia da igreja para minha casa através de um bananal. É claro que o homem gritou pelo meu pai que veio também a correr mas só me conseguiu apanhar à entrada da nossa casa. Meteu-me de imediato na carrinha e levou-me para a zona. A minha mãe foi lá ter a pé, logo que soube. Fui imediatamente socorrido pelo enfermeiro da zona, que depois de me limpar a ferida, me aplicou 7 agrafos. Ainda hoje carrego essa cicatriz, como “medalha de bom comportamento”.
 
 
 
Os dias que se seguiram, foram terríveis, pois não deixei de ir à escola. Como não podia andar, o meu pai levava-me de carro até à escola e ao colo até à carteira onde eu me sentava. No intervalo os meus colegas iam para a brincadeira e eu ficava sozinho sentado na sala, até à hora da saída, quando o meu pai me ia buscar.
 
 

Numa das viagens a Luanda, regressávamos ao Quitexe de boleia com o Sr Silva (Fogueteiro) e esposa, eu e a minha mãe, no carro do Sr. Silva, um volvo “marreco”. Ao chegarmos aos morros do Piri, viam-se alguns camiões enterrados pelo morro acima. Aguardavam a chegada de uma máquina para os desenterrar. Como nós íamos num automóvel ligeiro, os camionistas e respectivos ajudantes, posicionaram-se ao longo da subida. Os passageiros do volvo, subiram o morro a pé (como eu adorava andar com os pés na lama). Gostava particularmente desta azáfama de atascanços, chuvas, matas, etc. O cheiro da mata, em especial depois de uma chuvada é das coisas agradáveis de sentir e que nunca se esquece. O Sr Silva, embalou o carro o mais que pode e quando este começou a patinar, os camionistas começaram a empurrá-lo até ao cimo do morro. As sandes que levávamos para o caminho, foram entregues aos camionistas, pois nós sabíamos que passando o Piri já chegávamos ao Quitexe.

 

António Manuel Guerra

As fotografias da minha infância no Quitexe - Parte I

Quimbanze, 10.04.10

Carnaval no Quitexe.
Aqui só reconheço o Acácio Barreiros atrás com o braço por cima de outro garoto.
A irmã dele (Maria da Graça de Frias Barreiros) é a menina da frente lado esquerdo, ao lado do garoto de capuz alto. Pode ser que apareçam mais a identificarem-se. Peço desculpa pela falta de memória.
 
Dia de comunhão no Quitexe.
 
Creio que o Sr. Arcebispo se chamava “D. Moisés Alves de Pinho”
Da esquerda para a direita:
Maria Manuela Jardim Baptista (filha da D. Rosa Maria e do sr. Baptista da fazenda Pumbaloge)
Eu, o João José Jardim Batista irmão da Manuela, a Maria da Graça Barreiros e o Acácio Barreiros.
Esta foto foi tirada na varanda da residência do chefe de posto.
 
Comunhão no Quitexe:
Fazendo continência está o João Baptista. Eu de laço, atrás a minha irmã Maria Odete, ao lado a Dina Maria de Frias Barreiros, a Maria Manuela Baptista a Maria da Graça Barreiros.
A senhora de casaco xadrez é a D. Rosa Maria esposa do sr. Baptista. Do lado direito, atrás, encostada ao carro e de vestido florido, está a minha mãe e à frente a D. Lucília Barreiros (ainda me lembro das “galhetas que ela nos pregava na escola)
António Manuel Guerra

As fotografias da minha infância no Quitexe - Parte II

Quimbanze, 10.04.10

 

Passeio de barco na Lagoa do Feitiço

 

 

 Pic-nic na Lagoa do Feitiço

 

Da esquerda para a direita, de chapéu está um padre de quem não me lembro o nome, a seguir, o sr. José Coelho Guerreiro, eu, a D. Felismina, a minha irmã Odete e a minha mãe. Com a armadilha de peixes na mão está o Zézito (morto no Quitexe), filho do sr. José Guerreiro e D. Felismina.
O Quitexe nos anos 50
A minha irmã Odete em frente à casa do meu tio Celestino. Havia uma buganvília enorme em frente da casa do tio Celestino. Ao fundo a casa do sr. João Garcia e no terreno vago entre estas duas casas, foi construída a casa dos meus pais.
 
À esquerda, o meu tio Jaime Marcelino Pereira, ao centro o tio Henrique Borges Pereira, e ?????
Foto tirada em frente da casa do tio Celestino e ao fundo a casa do sr. João Garcia.
A minha irmã Odete no Quitexe. Ao fundo, na rua de cima, o edifício do Posto. Na rua de baixo existiriam ainda pouquíssimas casas
 
Eu e a minha irmã na rua de baixo no Quitexe. Comparando estas fotos dos anos 50 e as fotos dos anos 60, nota-se que o Quitexe cresceu bastante mesmo. Como disse o Sr. João Garcia no seu livro, eram umas terras muito cobiçadas.

As fotografias da minha infância no Quitexe - Parte III

Quimbanze, 10.04.10

 

Despedida do chefe de posto, Manuel da Silva Barreiros.
A senhora que se encontra do lado esquerdo é a menina Efigénia (da família Manda Fama) e era a nossa catequista. A minha mãe Maria Helena, está a “empurrar a menina que ia entregar as flores (filha da D. Céu Carneiro) que se encontra junto ao ombro esquerdo da minha mãe e junto do ombro esquerdo da D. Céu Carneiro ainda se vê um pouco a D. Felismina Carrusca Cebola, esposa do Sr. José Coelho Guerreiro. Em frente da minha mãe vê-se um rapazito que é o José Manuel Cebola Guerreiro, morto no 15 de Março de 1961.
 
Despedida do chefe de posto, Manuel da Silva Barreiros
De braço no ar o Acácio Manuel de Frias Barreiros, filho do chefe Barreiros e da D. Lucília que foi professora no Quitexe. No lado direito da foto estou eu ao fundo. O chefe Barreiros está de lado no canto esquerdo da foto.

Recordações – II parte

Quimbanze, 10.04.10
Nesta II parte, proponho-me reviver a infância que vivi no Quitexe, até aos meus 10 anos. Se não toda a infância, alguns dos episódios que mostram como era diferente a vivência de um menino do mato, criado à solta entre a natureza e as gentes.
Estava longe de ser um menino modelo, mas fui muito feliz, muito livre…
 
Apelo a que todos os que visitam este blog e que passaram pelo Quitexe que escrevam as suas vivências ou o seu sentir de adultos. Será uma mais valia, não para a história da humanidade, mas para os que nos são próximos e para que se entenda melhor do que falamos quando falamos de África.
 
 
CAÇADA AO PORCO
 
Desde sempre me recordo de me levantar bastante cedo para as brincadeiras num Quitexe em crescimento. Com sete anos o meu pai deu-me uma espingarda de pressão de ar com que eu andava sempre aos tiros à passarada. Era mais o chumbo que eu espalhava do que os pássaros caçados.
 
 
Com 8 ou 9 anos, o António Figueiredo Antunes (filho da D. Alice e do Sr. Antunes do talho), era o meu companheiro de brincadeiras e aventuras, quer pela proximidade de idades, quer porque durante algum tempo eles viveram nos anexos de casa dos meus pais, onde também funcionou o talho.
E foi quando eles ainda viviam nos nossos anexos que empreendemos outra das nossas aventuras.
Como víamos que os adultos volta e meia saíam para a caça, resolvemos armar-nos em grandes caçadores e combinámos uma caçada.
O Antunes iria “roubar” uma espingarda do pai (uma flauber de catuchos de 12 ou 14 milímetros, não me lembro bem) e eu iria “roubar “ a pistola 6,35 mm do meu pai.
À noite, antes dos meus pais se irem deitar, fui ao quarto deles, tirei a pistola e escondi-a numa caixa de sapatos. Levei-a para o meu quarto sem que ninguém desse conta do sucedido.
Era ainda de madrugada (como de costume, eu levantava-me de madrugada, ou para “aprontar” ou para fazer os famosos TPC) e lá nos encontrámos os dois ao portão da minha casa. Lá vamos nós confiantes que a caçada seria boa, como sempre era nas terras fartas de Angola.
Saímos pelas traseiras de minha casa em direcção a um bananal que havia ao fundo dos anexos, entre a casa dos meus pais e o morro da igreja. Foi aí que encontrámos uns pastores do gado do Sr. Antunes (que se aqueciam junto de uma fogueira) e ficámos com eles à conversa. É claro que não se sentiam nada à vontade de ver dois miúdos armados ali àquela hora (ainda era escuro).
Nisto surge por ali um leitão e o amigo Antunes nem pensou duas vezes e vai de chumbo em cima do bicho que fugiu a grunhir por ali fora. Eu nem sequer tive tempo de disparar, que frustração!
Sem que nós déssemos conta, o pastor mandou avisar os nossos pais. Passados uns instantes aparece de novo o tal leitão e o Antunes fez novo tiro para o bicho que uma vez mais se recusou a morrer ali e fugiu a bom fugir.
Como começava a clarear resolvemos regressar a casa, pois o pessoal levantava-se com o nascer do sol e nós não queríamos ser agarrados. Pensávamos continuar as nossas caçadas noutros dias, se aquele nos corresse bem.
Quando nos aproximávamos de minha casa, ….. Oh desgraça! Tínhamos uma comissão de recepção à nossa espera. Os meus pais, os pais do Antunes e a dona do leitão que era uma vizinha nossa, não me recordo o nome, mas vivia na casa do sr. Ricardo Gaspar, próximo da casa do tio Celestino.
É que entretanto o dito leitão que se tinha recusado a morrer no mato, foi morrer ao curral que lhe pertencia.
É claro que fomos imediatamente desarmados e brindados com uma surra tremenda.
Eu da minha parte fiquei bastante aborrecido, pois além de desarmado e humilhado, não dei nenhum tiro, mas serviu-me de emenda. Pelo menos nunca mais tirei a pistola do meu pai… até chegarmos a Luanda. Mas essa foi outra história ……

Histórias e recordações do Quitexe - Problema resolvido

Quimbanze, 10.04.10

Do António Guerra recebemos mais um naco de prosa delicioso sobre a  história da sua infância no Quitexe. Transcrevo, também parte da sua mensagem, que é, no fundo, um pedido de mais participação ao pessoal que, na meninice, comeu as mangas e pitangas daquela terra.

 

Como o material sobre o Quitexe começa a faltar, junto envio mais uma das minhas recordações.
Pena que mais ninguém se lembre de nada.
O que é feito da Nônô (Maria Onorinda Gaspar Ramos)?
E a malta da família Manda Fama?
E o António Rei?
Todos eles andaram na escola e devem lembrar-se de alguma coisa.
Eu da minha parte penso continuar enquanto tiver alguma coisa para partilhar.
Agora é que a minha professora vai dar por bem empregues as palmadas que me deu...
 
 
Problema resolvido
O mote sobre o “menino” foi dado no episódio da caçada ao porco. O que se vai seguindo, não foge muito do rapaz que eu era e da maneira livre e segura como fui criado. Proponho-me, hoje, falar da pessoa, penso eu que a única, que me conseguia “domesticar”, a professora D. Lucília Barreiros.
Com sete anos, entrei para a escola e, como no Quitexe não havia propriamente uma escola, um espaço físico com esse nome, as aulas eram dadas num salão do posto administrativo. O nosso professor, de quem tenho uma lembrança muito vaga era um senhor já bastante entrado na idade e que tinha duas características interessantíssimas. Tinha alguns dentes estragados e era muito guloso. Como àquela altura já todos tínhamos tirado o curso de malandragem, depois do intervalo não tínhamos aula, pois o lanche dele era quase sempre pão com goiabada que lhe provocava uma dor de dentes daquelas. Quando o lanche variava, algum de nós se incumbia de dar um doce ao senhor. Eu, tinha a tarefa facilitada, pois com relativa facilidade retirava da loja dos meus pais alguns rebuçados, que inocentemente deixava sobre a carteira.
Tivemos depois como professora (por pouco tempo) uma senhora que morava na rua de cima, que era esposa de um senhor chamado Pirão.
Entretanto, foi construída a escola do Quitexe e foi lá colocada a D. Lucília Barreiros, que é sem dúvida nenhuma a professora que mais recordações me deixou, quer pela amizade que unia as nossas famílias, quer como professora e as “galhetas” com que me presenteava.
 A escola do Quitexe
 
A D. Lucília usava um anel, um famoso “cachucho” cravejado de pequenas pedras coloridas. Para além de vistoso e talvez valioso, tinha uma função ligada à profissão. Onde ele assentasse era certo e sabido que se “abriam as mentes”. É que as chapadas eram sempre dadas com as costas das mãos.
 
Eu, pela minha parte, todos os dias levava… mas eram merecidas.
 
Como quando saía da escola, todo o tempo era pouco para brincar, o tempo era curto e o Sol punha-se cedo. Fazia, então e apenas aqueles TPC em que não tinha volta a dar, como por exemplo cópias e contas. Assim que os aprontava, corria para a brincadeira e deixava para fazer de manhã cedo os problemas de um famoso livro de problemas, o 1111, que me valia sempre o “lembrete” de que eu andava mal nos problemas.
Levantava-me com o nascer do sol, fechava-me na casa de banho, abria a janela e no parapeito, para aproveitar a luz do sol nascente (só havia electricidade até às 23 horas) preparava-me para resolver os problemas segundo um método bastante rápido que eu tinha desenvolvido e que me deixava bastante tempo livre para brincar e pensar noutras aventuras.
Começava por ler “atentamente” o problema, quero dizer, a pergunta do problema. Por exemplo: “quantos quilos de arroz”… já não lia mais nada e respondia: 3 quilos de arroz. Problema resolvido, passemos ao seguinte.
“Quantas laranjas”… 12 laranjas. Venha o terceiro.
É claro que ninguém sabia do estranho método por mim desenvolvido e como os problemas estavam todos errados, lá era brindado com um bom par de galhetas, com umas chamadas de atenção para treinar mais os problemas, mas no fundo era um rapaz muito aplicado porque os trabalhos iam todos feitos.
Mais tarde abriu um colégio no Quitexe, propriedade do padre Antunes (se a memória não me atraiçoa) e que também tinha um colégio no Uige. Na 4ª classe, eu fui para o colégio, mas a D. Lucília comparada com o dito padre era a santidade em pessoa. O padre quando começava a “tocar o bailinho mandado” corria a sala toda à pancada. Era tanta a porrada, que até chegava a ter saudades das galhetas da D. Lucília.
Os intervalos eram bem mais agradáveis. O pessoal da escola tinha, à mão de semear, as mangueiras e pitangueiras da administração para se banquetearem. Os do colégio não tinham nada, pois este funcionava numa casa alugada próximo da casa do sr. José Guerreiro. Mas a solução do problema foi fácil (mais fácil do que os do 1111). Os do colégio iam roubar as mangas da escola. A partir daí e com fartura de “munições” de parte a parte, começava a batalha campal de caroços de mangas entre escola e colégio. As famosas batas brancas haviam de ficar bonitas! Isso era problema para as mães resolverem. Não me lembro de ser castigado por isso. Mas qual boullying, qual drogas, nós éramos saudavelmente activos e ar puro era o que não nos faltava.
Agora, pensando melhor, só não fui médico (como o meu pai tanto sonhava) por causa desta pedagogia activa com que fui brindado logo no início da escolaridade.

A professora faz "milagres"

Quimbanze, 10.04.10

 

Certo dia, o meu pai foi a Luanda com o Sr. Baptista da fazenda Pumbaloge, a D. Rosa Maria esposa do sr. Baptista, a Manuela e o João. A Manuela e o João eram filhos do Sr. Baptista e da D. Rosa, e frequentavam também a escola do Quitexe - Durante a semana ficavam em casa dos meus pais e ao fim de semana iam para o Pumbaloge.
Quanto à Manuela, tive o grato prazer de a reencontrar ao fim de 49 anos de separação, tenho falado com ela bastantes vezes e é sempre com muita alegria que recordamos alguns momentos da nossa infância (e ela tem imensas recordações) no Quitexe e no Pumbaloge.
Acontece que em Luanda iam decorrer as corridas de automóveis e, como não podia deixar de ser, eles iam assistir, mesmo que para isso a Manuela e o João tivessem que falar um dia ou dois à escola. Escusado será dizer que eu também queria ir, pois além de ir passear a Luanda e ver as corridas, ainda faltava à escola. Eu argumentei, berrei e fiz trinta por uma linha, mas não fui. O meu pai para me calar lá me foi dizendo que eu ficava, mas quando estivesse doente não ia à escola.
É claro que no dia seguinte eu estava muito, mas muito doente mesmo. A minha mãe como me conhecia bem as manhas, não acreditou e queria que eu fosse à escola. “Não vou, mesmo que para isso tenha que fugir”. Se bem o pensei, melhor o fiz e vá de correr por ali fora, sem destino. Foram mobilizados os criados lá de casa para me apanharem e me levarem ao pé da minha mãe. Com a agilidade de umas corridas, umas fintas e algumas pedradas bem mandadas, lá consegui manter o inimigo que me queria apanhar a uma distância considerável de segurança. Eles certamente não estariam também muito interessados em apanhar-me até porque havia uma certa cumplicidade entre nós (como eu gostava de ir comer com eles aquelas belas funjadas).
 Como começava a ficar cansado de tanta fugida, refugiei-me muito sorrateiramente numa casa próxima da minha onde vivia a minha tia Ana, esposa do tio Tomás (irmão do meu pai). A minha tia apercebeu-se da minha entrada, fechou a porta e aguardou que a minha mãe me fosse buscar.
Fui agarrado, levei uma tareia (embora continuasse doente) e por uma orelha fui levado até à escola. Quando chegámos à rua de cima, de onde se via a escola, a D. Lucília estava à porta a apreciar o espectáculo. Eu mal a vi …..MILAGRE, passou-me a doença toda. Libertei-me do “carinho” da minha mãe e muito direitinho, como todos os meninos bem comportados, entrei para a sala. A D. Lucília não perguntou nada e eu também nada disse. Fiquei aborrecido por não ter visto as corridas de automóveis em Luanda e acima de tudo por não terem acreditado na minha doença súbita.
A vida já nessa altura era muito injusta para algumas crianças, onde eu me incluía. Tenho a impressão que Os Direitos das Crianças não tinham ainda chegado ao Quitexe.
 
António Guerra